Cleópatra, de Júlio Bressane

CLEÓPATRA
Julio Bressane. Brasil. 120 minutos. Alessandra Negrini, Miguel Falabella, Bruno Garcia.


Júlio Bressane formou com Rogério Sganzerla o movimento do Cinema Marginal no Brasil. Filmes de baixíssimo orçamento, por muitas vezes experimentais, crus. Linearidade e narrativa simples não fazem parte deste mundo, que é composto de muita pesquisa estética e de linguagem cinematográfica.

É a partir deste ponto de vista que devemos pensar Cleópatra de Bressane. Este filme não é apenas a história da 7ª Cleópatra que governou o Egito e se matou com uma picada de cobra. Contar a história da rainha parece ser uma preocupação menor de Bressane diante do que ele nos apresenta.

Antes de discutirmos o filme, é interessante ressaltar que o diretor levou cerca de 15 anos estudando o mito para fazer o roteiro. Isso quer dizer que o filme não nasceu da noite para o dia, mas foi fruto de muita pesquisa. Além disso, o roteiro é uma co-autoria entre Bressane e sua mulher, Rosa Dias.

O filme inicia a partir do momento que é entregue à Julius Augustos César, por mando de Ptolomeu XIII, rei do Egito e irmão de Cleópatra, a cabeça de Pompeu, general romano que acabara de ser derrotado por César na Batalha de Farsália. A intenção deste ato era agradar o nobre romano, e mostrar que o Egito era um aliado. Chocado com tal ato, César toma Alexandria.

O clima em Alexandria era de guerra ente os irmãos, Cleópatra VII e Ptolomeu XIII. Ciente de sua posição frágil, Cleópatra tenta persuadir César a ficar ao seu lado. O seduz, e tornam-se amantes. Após diversos levantes políticos e militares em ambas as nações, César é morto, Cleópatra torna-se única governante do Egito, que agora é um protetorado de Roma.

Novamente, Cleópatra procura seduzir os mandantes de Roma, na pessoa de Marco Antônio (que fazia parte do Triunvirato governante da potência latina) para manter seu povo em segurança e a cultura egípcia preservada. Porém, seus esforços não sucedem de maneira completa, e acaba por se matar.

Mas Cleópatra de Bressane é um filme muito particular. Não devemos compara-lo a nenhuma das diversas versões anteriores para o cinema, em especial as de Cecil B. DeMille (1934 – Oscar de fotografia) e Joseph Mankiewicz (1963 – Oscar de fotografia, figurino, efeitos visuais e direção de arte), ambas feitas em Hollywood, ambas com orçamentos astronômicos, sendo a primeira um enorme sucesso e a segunda um retumbante fracasso. Primeiro, por causa do orçamento. O filme de Bressane gastou menos do que ganhou Elizabeth Taylor para fazer o papel da rainha egípcia no filme de Mankiewicz. Segundo, pelo tamanho do filme. As duas produções americanas foram filmes épicos, grandes, com muitos figurantes, muitos cenários, produção enorme, e o filme nacional é um filme pequeno com poucas locações, poucos atores, poucos figurinos, um filme reduzido. Terceiro, pela intenção de Bressane. Aqui ele não pretendeu contar a história épica, como na maioria das abordagens anteriores, da colisão de dois mundos, de duas potências da antiguidade, e das paixões entre seus governantes. O objetivo de Bressane era mostrar as várias facetas desta que foi uma das mais conhecidas rainhas de toda a história.

De acordo com a leitura do diretor, a rainha era uma mulher não apenas muito bela e sedutora; era também inteligente, versada em conhecimentos arcanos e místicos, que perpassavam a culinária, a sexualidade e as palavras. Bressane deixa isto bem claro pelo modo como ela hipnotiza os dois homens – César primeiro, por sua demonstração de sabedoria, magia e charme, e Marco Antônio, através de seu conhecimento dos prazeres carnais – não apenas sexo, mas também instintos animais, representados por festins típicos de Baco, repletos de comida, bebida e orgias. Festins estes que irão sobrepujar a capacidade da rainha em discernir os limites, e leva-la ao fundo do poço, entregue totalmente à banalidade do sexo e dos referidos prazeres para ser resgatada depois e, sem conseguir carregar esta vergonha pela vida, cometer suicídio, num misto de culpa, desespero, arrependimento e dor.

A comparação deste com os dois últimos filmes de Bressane também se faz delicada. Filme de Amor é uma forma esteta de tratar filosofia. Dias de Nietzsche em Turim, uma forma poética de tratar a filosofia. O primeiro é denso, lento, com muitas falas significativas, e poucos movimentos de câmera. O segundo, um filme leve, belo, tocante, mais fluido.

Cleópatra tende a se aproximar de Filme de Amor. Primeiro, porque é um filme com poucos movimentos de câmera. Seus planos se assemelham a quadros clássicos e neo-clássicos que retratam o período. Por vezes nos sentimos em um museu ouvindo as personagens conversarem, como se fossem feitos de tinta. Não é à toa que ganhou em Brasília o prêmio de melhor fotografia – que Walter Carvalho, fotógrafo de Cleópatra, também ganhou com Filme de Amor, no mesmo festival. As cenas possuem um tratamento de luz simples, mas preciso, sabendo diferenciar claramente os interiores entre si. Além disso, os planos-seqüência tomam conta do filme. Bressane leva às últimas conseqüências os planos-quadros, evitando deliberadamente em tornar o filme mais palatável para o espectador.

Outro motivo que nos leva a aproximar Cleópatra de Filme de Amor são os diálogos. Por vezes, textos longos e complexos, que falam de filosofia, magia ou amor. Há muitos diálogos, que se cruzam e entrecruzam, que possuem significado além daquilo que está sendo dito. Citações, exposições de filosofias e ideologias tornam o texto um baú cheio de surpresas inesperadas.

Já a narrativa, quase linear, é uma coisa pouco usual aos filmes de Bressane. Quase não há flashbacks ou transgressões temporais no filme. A história é contada de forma simples, do início ao fim. É como se Bressane deixasse a história – já conhecida de todos – imersa no inconsciente, para que fiquemos atentos às suas subjetividades. Em verdade, não há necessidade de acompanhar a história em si, mas sim as entrelinhas que a formam.

Cleópatra também arrebatou o prêmio de direção de arte no festival de Brasília. Moa Batson, que também trabalhou com Bressane em Filme de Amor, foi o responsável por coordenar a difícil tarefa de decorar as locações com tão pouco orçamento. De fato, há certa pobreza nos ambientes, e há muita repetição de elementos. Claro que isso é uma escolha consciente do diretor, a de incorporar a falta de verba no estética do filme, pois Bressane não tem ilusões sobre os custos da produção, e isso pode ser notado desde seus primeiros filmes. Não que ele coloque a arte em segundo plano, muito pelo contrário, mas faz escolhas estéticas baseadas também no orçamento disponível, tentando inclusive desconstruir alguns dos nossos conceitos de belo e de arte.

Outro elemento que é bem representado não apenas em Filme de Amor, mas em todos os filmes de Bressane, é a trilha sonora. Presente em muitas cenas, a trilha por vezes reflete a situação vivida na tela. É o caso quando Bressane apresenta Há um Deus, de Lupcínio, na voz de Dalva de Oliveira, para falar da traição (Se eles estão me traindo / E andam fingindo que é só amizade / Hão de pagar-me bem caro / Se eu algum dia souber a verdade), ou então Felicidade, de René Bittencourt. Nas demais cenas, músicas instrumentais seguem o curso dos acontecimentos, ora mais rápidas quando em momentos de tensão ou de orgia, ora mais devagar, quando em momentos de diálogos profundos. Pelo seu trabalho, Guilherme Vaz recebeu o prêmio de melhor trilha sonora em Brasília, repetindo também o feito de Filme de Amor.

O filme ganhou também o prêmio de melhor som (Leandro Lima), no mesmo festival. O som do filme não chama muito a atenção, com exceção de uma cena em que temos representadas todas as batalhas de César por sons de lutas, cavalos, gritos, enquanto a câmera enquadra sua túnica. Afora esta cena, a utilização dos efeitos sonoros, do sons ambientes, parece banal, pobre até, no sentido que se limita a representar o que vemos na tela.

Alessandra Negrini levou o prêmio de melhor atriz, numa atuação confusa. Para representar uma Cleópatra poliglota, falava com sotaques diferentes, sobrepondo-os, ora um, ora outro. Com trejeitos estranhos, afetações teatrais, conduziu a personagem de maneira quase autista. Isso tudo com endosso de Bressane. Aliás, Miguel Falabela e Bruno Garcia, além de vários outros personagens coadjuvantes (incluo aqui Taumaturgo Ferreira) apresentaram atuações teatrais, marionéticas, num misto de teatro, ópera e mímica. Devemos avaliar isso como uma escolha estética do diretor, já que não se atém a apenas um ator, e sim a todo o elenco. Mais uma tentativa de explorar os campos estéticos com novas formas experimentais de representação.

Premiado também foi o próprio Bressane, que recebeu o candango de melhor filme pela quarta vez, repetindo o feito de Filme de Amor (2003), Miramar (1997) e Tabu (1982), tornando-se o maior vencedor do festival. Com um filme que traduz seu cinema em todos os âmbitos, manteve-se fiel ao seu movimento e suas convicções cinematográficas. Uma pena, pois assim perde o diretor em incorporar o novo na sua cinematografia – algo que conseguiu com Dias de Nietzsche em Turim, sem perder sua veia filosófica e experimental – e perde o espectador, no sentido de ser privado da possibilidade de viver novas experiências através dos olhos de um diretor tão singular.

Assim, o filme realiza a visão quase iconofílica de Bressane ao mito de Cleópatra e, a partir disso, nos demonstra os perigos de percorrer certos caminhos da vida desavisadamente – os caminhos do amor, da sedução, da luxúria.

Comentários

Anônimo disse…
e aí, presta?

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