Análise: "Teorema", de Pasolini

te.o.re.ma
sm (gr theórema) Qualquer proposição que, para ser admitida ou se tornar evidente, precisa ser demonstrada.
- Dicionário Michaelis


O filme de Píer Paolo Pasolini, feito na Itália em 1968, com duração de 105 minutos, gira em torno de 6 personagens: Um rico industrial, sua mulher, sua filha, seu filho, a empregada da casa e um visitante misterioso. A história fala da mudança na vida deste núcleo familiar a partir da chegada de um homem que seduz a todos.

O filme não é linear. A primeira cena, de abertura, mostra o resultado de uma das últimas cenas. Vemos um repórter entrevistando proletários que ganharam do patrão (Paolo) a fábrica em que trabalhavam, ação esta que ocorre apenas no final do filme. Esta, assim como outras cenas, são deslocadas temporalmente, porque o importante neste filme não é a linearidade, mas a mensagem de Pasolini.

O visitante é anunciado por um carteiro, de nome Angelino, via telegrama. Da mesma forma, o visitante vai embora, a partir de uma carta. O carteiro é um jovem alegre e brincalhão. Se considerarmos que ele é o responsável por trazer à casa – uma casa burguesa, vazia emocionalmente, sem vida – o amor, a paixão, podemos fazer um paralelismo entre ele e Cupido. Ambos são brincalhões, gostam de pregar peças. Ambos se assemelham a Anjos – a forma contemporânea de Cupido é a de uma criança de cabelos cacheados portando um arco, muito semelhante ao modo como o carteiro se apresenta, e Angelino é uma corruptela de Ângelo, que significa anjo. Além disso, o arco é uma arma mortal. Sabemos que a pena (escrita) é a arma mais mortal de todas. Palavras foram responsáveis pela vinda do visitante, e palavras serão responsáveis pela sua saída da cena.

Dele nada se sabe, apenas que é extremamente sedutor, jovial, com bastante energia, carinhoso e que lê Tolstoi e Rimbaud. Chega de repente, parte de repente, transformando a vida de todos. Ele praticamente não fala, e os diálogos do filme poderiam muito bem ser chamados de monólogos, já que as personagens falam mais para si mesmas do que para o outro, principalmente quando o outro é o visitante.

Na cena em que o visitante conforta Paolo, o trecho lido de Tolstoi é o seguinte: “Mesmo naquele estado, Ivan Ilitich encontrou conforto. O encarregado da limpeza era Guérassime, um jovem camponês asseado, sadio...”. Como se Ivan Ilitich fosse o próprio industrial à beira da morte, impassível à vida dos outros como deve ser um burguês. E o visitante seria Guerássime, belo, asseado, jovial.

Outra analogia à personagem do visitante se dá em outra leitura, agora de Rimbaud. “Ele era toda a sua vida. O ciclo de bondade demoraria mais a se reproduzir do que uma estrela. A Adorável, que eu não esperava, tinha vindo, não voltou e não voltaria mais”, sendo ele a personificação d’A Adorável, que aparecera de repente e em breve iria embora para não mais voltar.

A primeira pessoa a ser afetada pela chegada do visitante é o filho, Pietro, um jovem com muitos amigos, esportista. Ele fica tomado de paixão e admiração, e é também o primeiro a dormir com ele, fato que inicia no rapaz uma transformação. Quando o visitante vai embora repentinamente, Pietro faz um belo discurso, evidenciando o quanto aquele encontro o modificou, e o quão vazio e perdido ele ficaria sem o visitante por perto. A partir de então, ele cai num processo de auto-conhecimento criativo, e através da pintura, desenvolve seu lado reprimido. Para ele, a transformação foi benéfica, porque o levou a exteriorizar seu potencial criador, através da perda, tornando-se um artista. De sua boca é proferido um discurso que parece ser um recado do próprio diretor para o mundo:

“É preciso tentar inventar novas técnicas, impossíveis de reconhecer, que não se pareçam com nenhuma técnica precedente, para evitar a puerilidade do ridículo. Para construir um mundo próprio, sem confrontação possível. Para o qual não existam precedentes de julgamento, que devem ser novos como a técnica. Ninguém deve saber que o autor não presta, que é um ser anormal, inferior que, como um verme, se contorce para sobreviver. Ninguém deve apanha-lo em um momento de ingenuidade. Tudo deve apresentar-se perfeito, baseado em regras desconhecidas, e portanto, indubitáveis. Como um louco. Vidro sobre vidro, porque não sou capaz de corrigir nada, e ninguém deve perceber. Um sinal pintado num vidro. Corrigir sem sujar. Um sinal pintado antes em outro vidro. Mas todos devem acreditar que não se trata do ato de um incapaz, de um impotente. Absolutamente. Mas que se trata de uma decisão segura. Sólida, elevada e quase prepotente. Ninguém deve saber que um sinal dá certo por acaso. ‘por acaso’ é horrível. E basta um sinal dar certo por milagre e é preciso imediatamente protegê-lo, conserva-lo, como uma tela. Mas ninguém deve perceber. O autor é um pobre idiota., um medíocre. Vive no acaso e no risco, desonrado como uma criança. Reduziu sua vida à melancolia e ao ridículo de um ser que sobrevive degradado, sob a impressão de ter perdido alguma coisa para sempre.”

Além disso, sua nova morada ostenta seu novo modo de ver o mundo não apenas através das pinturas, mas também a partir de frases nas janelas: “Abaixo os estados”; “Abaixo todas as igrejas” e “Vive aquele que pinta”. O próprio modo de pintar de Pietro já demonstra a verdade por trás de suas palavras, com muito experimentalismo.

A filha, Odetta, em princípio parece uma jovem comum. Não conhece os homens, é virgem, e vive à margem do pai, demonstrando sua admiração por ele numa das primeiras cenas, onde vemos uma foto de Paolo em seu caderno de estudos. A segunda vez que ela aparece é indicando rapidamente, numa festa, quem seria o visitante para uma amiga americana, e a resposta não poderia ser mais vaga: Quem é este rapaz? É um rapaz. Ela aparece novamente tomando conta de Paolo, o patriarca, que está doente. E fica encantada com o visitante, vendo como este é querido pelo pai e como o trata carinhosamente. Apaixona-se perdidamente, perdendo a virgindade com ele. A ida do visitante faz com que ela não apenas fique desesperada mas perca toda a vontade de viver, tendo vivenciado algo tão transformador e logo em seguida perdido, entrando num transe catatônico que não tem solução, sendo levada para o hospício.

Lucia, a matriarca, também se sente atraída pelo rapaz. Com uma vida sexual aparentemente nula e, segundo a própria personagem num monólogo, vivendo de forma vazia e indiferente, ela é arrebatada por uma paixão incontrolável pelo visitante, que é consumada numa varanda. Com a ida do visitante, ela perde o rumo de sua vida, e é tomada por um vazio interior ainda maior. Assim, procura preencher esse vazio buscando rapazes na rua, dormindo com eles, tentando em vão reencontrar o visitante, até se desesperar e ir para uma igreja buscar a salvação.

A empregada, Emília, também é arrebatada de paixão pelo visitante. Ela tenta ao máximo não demonstrar isso, de acordo com deve ser sua submissão e anulação pessoal perante seu ofício de empregada, e quando não mais consegue, tenta o suicídio, sendo salva pelo seu objeto de desejo, indo para a cama com ele. Desesperada com sua partida, volta para seu vilarejo natal e transforma-se numa santa, comendo apenas urtiga, fazendo milagres e abrindo mão da própria liberdade para o bem dos outros. Ela é a segunda representação do proletário, e sua santificação está de acordo com a visão de Pasolini do reconhecimento do trabalho e sofrimento dos trabalhadores.

Paolo, o industrial, também se apaixona pelo rapaz. De forma mais tranqüila, o ato se consuma longe de casa, numa viagem a dois. Quando o rapaz vai embora, Paolo percebe que sua vida não faz mais sentido, abrindo mão não apenas de sua casa e de sua fábrica, mas também de sua sanidade. E nem mesmo a possibilidade de encontrar outro alguém, por mais parecido que seja com o visitante, como acontece na estação de trem, parece suficiente para ele. A cena final do filme mostra Paolo correndo nu pelo deserto do vazio, deserto esse que é apresentado durante todo o filme, bem como nos créditos iniciais, e antecede todas as cenas em que o visitante vai transar com alguém da casa, como se para mostrar o vazio em que aquelas pessoas se encontram. O fato desta cena acontecer numa estação de trem evidencia mais ainda o fato de Paolo estar embarcando numa viagem, só que nesse caso uma viagem interna, e sem volta.

O deserto é de tom cinza-azulado, e quase todo o filme é tomado por azul, principalmente nos primeiros 50 minutos, sendo a primeira comtotal ausência de azul a cena onde Lucia se despe para transar com o visitante. A cozinha é toda azul (e vazia), as roupas são primordialmente azuis. Mesmo no jardim, quando Emília está limpando e observando o visitante, temos a lata de lixo e a piscina, azuis. O azul representa esse estado de vazio inicial e final das personagens.

A partir da cena de Paolo transtornado pela casa, os tons predominantes passam a ser o creme e o branco, mas o azul se mantém presente, voltando a predominar mais próximo do final do filme, e principalmente na última cena, deixando a angústia cada vez mais evidente.

A fotografia é nítida, e em geral os planos são abertos ou médios, para evidenciar o vazio presente nas cenas. Pouco closes acontecem, e quando o fazem, são para demonstrar momentos de tensão interna das personagens, que ficam sempre em primeiro plano. Há o uso de espelhos em algumas cenas, em que temos as personagens se confrontando consigo mesmas. No início, depois da entrevista com os operários, o filme se torna preto-e-branco, voltando a ser colorido apenas quando é anunciada a chegada do visitante pelo telegrama, para demonstrar que ele é o responsável por trazer vida àquela casa. A maioria das cenas têm a câmera fixa num tripé, com poucas exceções, como a cena em que a filha inicia seu estado de perturbação mental com a câmera girando em seu redor, ou para demonstrar a tensão do filho quando tenta se aproximar sexualmente do visitante. Nesta mesma cena há a única quebra de eixo do filme.

As falas são todas dubladas, o que causa estranhamento durante o filme, principalmente pela falta de sincronismo em algumas cenas e falta de emoção em outras. Não fica evidente se isso se deve a uma opção estética de Pasolini ou à simples falta de recursos deiponíveis.

Apesar das falas, as atuações são realistas, com exceção apenas do carteiro, que não chega a ser inverossímil por sua personalidade, mas que possui uma atuação que destoa do resto.

Há muita trilha sonora extra-diegética. O único momento que há música em cena é na festa onde somos (re)apresentados aos personagens. Em geral as músicas são clássicas, a trilha é densa, uma trilha que nos remete a Igreja, ao canto gregoriano, um misto de sacralidade e tensão, com exceção da música que é tocada quanto temos em cena o carteiro. Neste caso, é tocado um rock alegre, leve, de acordo com a personagem, sorridente e saltitante.

E porque Teorema como título?

De acordo com o Dicionário Michaelis, teorema é algo que precisa ser demonstrado para ser aceito. A hipótese deste teorema é de que o mundo burguês é um mundo vazio, e que pode ser transformado completamente se o equilíbrio causado nesse vazio for abalado. O filme seria a demonstração categórica disto que Pasolini considera como fato consumado, que neste caso específico tem o ato sexual como o vetor de transformação, por ser algo que é ao mesmo tempo fazer e sentir.

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