Two Ghosts in one shell – um texto comparativo para além do whitewashing
Já sabemos que a indústria
audiovisual estadunidense é famosa por whitewashing – em
adaptações, versões ou remakes, coloca-se personagens de outras
etnias para serem atuados por brancos. Se fosse uma coisa ocasional
não seria um problema, mas é uma coisa sistemática num mundo
extremamente racista e xenófobo. Muitos exemplos existem: John Wayne
foi Genghis Khan, David Carradine era um oriental na série Kung Fu,
Boris Karloff e Christopher Lee ambos representaram Fu Manchu,
Laurence Olivier foi Othello, Alec Guiness apareceu como Príncipe
Faisal, Max Minghella fez o papel de Divya Narendra, Noah Ringer foi
Aang, Tilda Swinton faz papel de alguém do Himalaia, Goku é
representado por Justin Chatwin, Tom Cruise atuou num papel que era
originalmente de um japonês, Anthony Hopkins assume um papel
afro-americano, Anthony Quinn representa um grego, Jake Gyllenhaal
faz papel de persa, Josh Hartnett faz papel de Inuit, Jeremy Irons,
Meryl Streep e William Hurt representam latino-americanos e
basicamente todos atores em qualquer filme ou seriado que se passe no
Egito e em Roma estão fazendo whitewashing– incluindo aqui o papel
de Jesus Cristo.
Com “Ghost in the shell” não foi
diferente. O filme “original” se passa no Japão e todos os
personagens originalmente têm aparência “asiática” (para não
dizer japonesa). São japoneses, e não tem muito motivo para que,
por exemplo, a robô tivesse aparência diferente do lugar onde ela
existe/habita. E no remake hollywoodiano tem muito ator não-oriental
fazendo papel de oriental (além da Scarlett Johansson temos Pilou
Asbæk, Juliette Binoche, Michael Pitt, Danusia Samal, Lasarus
Ratuere, Peter Ferdinando, Anamaria Marinca, etc.). E isso não só é
um problema grave como é um problema injustificável – existem
diversos atores com aparência asiática nos EUA que poderiam estar
nesses papeis.
Mas isso já foi extensamente discutido
internet afora e não é tema deste texto, apesar de já ter ocupado
dois parágrafos. Eu só não podia falar de Ghost in the Shell sem
falar desse fenômeno triste e onipresente naquele país.
AVISO: todo texto meu sobre produtos
audiovisuais contém spoilers. Não tem como apresentar uma avaliação
de algo de forma mais profunda (saindo do “gostei” e “não
gostei”) sem justificar, e não tem como justificar sem dar
spoiler. Tentarei dar o mínimo de spoilers, no entanto.
Outra questão importante: não
discutirei a fundo a história e discutirei apenas brevemente a
narrativa. O texto ficaria infinito. Vale a pena ver pelo menos um
dos filmes para ter conhecimento da história. É uma história
interessante mesmo quase trinta anos depois de escrito o mangá.
Se você não leu o aviso, leia.
O primeiro “Ghost in the Shell” é
uma adaptação do mangá com mesmo nome, escrito e desenhado por
Masamune Shirow. Não era exatamente um manga, eram histórias
publicadas na revista Weekly Young Magazine (週刊ヤングマガジン)
. Depois, reeditado, foi publicado pela Kodansha (株式会社講談社),
a maior editora do Japão. A adaptação animada foi roteirizada por
Kazunori Itô (prolífico roteirista) e dirigida por Mamoru Oshii,
que também dirigiu (e roteirizou) o longa “Ghost in the shell 2:
Innocence”, de 2004 (em português “O Fantasma do Futuro 2: A
Inocência”), que eu ainda não tive coragem de assistir. Teve até
série de televisão: “Ghost in the Shell: Stand Alone Complex”
(攻殻機動隊),
em 2002, escrita e dirigida por Kenji Kamiyama e produzida pela
Production I.G, Inc. (株式会社プロダクション・アイジ),
e “Ghost in the Shell: Arise – Alternative Arquitecture” (攻殻機動隊
ARISE), de 2015, vinda do (somando coisas ao) longa
animado “Ghost in the Shell: The New Movie” (攻殻機動隊
新劇場版), de 2013. E, claro, a adaptação/remake
estadunidense de 2017, dirigida por Rupert Sanders (que não fez nada
relevante ainda) e roteirizada por Jamie Moss (idem), William Wheeler
(idem) e Ehren Kruger (“A chave mestra”, “O Suspeito da rua
Arlington” e TRÊS TRANSFORMERS).
Já me perdi. Eu não sabia de NADA
disso (estou falando das mil adaptações e séries e filmes
japoneses). E vou me ater apenas, neste texto, ao primeiro longa
animado (de 1995) e o longa-metragem de 2017 (de Haollywood – pun
intended). Nem o mangá eu li (não me julguem, não vai adiantar
nada).
Os filmes do gênero Ação/Ficção
Científica contam a história da procura de um famoso/poderoso
hacker pela agência de segurança “Section 9”, utilizando sua
nova “máquina”: um androide humanoide senciente. A história
questiona a noção de individualidade e de humanidade através da
personagem principal e suas divagações.
O longa animado é baseado no mangá, mas o longa em live-action é baseado no longa animado (com um ou outro detalhe tirado do mangá).
O longa animado é baseado no mangá, mas o longa em live-action é baseado no longa animado (com um ou outro detalhe tirado do mangá).
Chamarei, a partir de agora, de “95”
o longa animado de 1995 e de “fraco” o longa-metragem de 2017.
Acho que vocês já sabem minha opinião sobre o filme da Scarlett...
Todo mundo localizado? Vamos lá.
Antes, uma explicação
De acordo com os estudos culturais atuais, em especial os de literatura, não existe “adaptação fiel”. Não é possível definir fidelidade numa adaptação, por algumas questões que apresentarei abaixo.
De acordo com os estudos culturais atuais, em especial os de literatura, não existe “adaptação fiel”. Não é possível definir fidelidade numa adaptação, por algumas questões que apresentarei abaixo.
O original é uma adaptação de série
escrita/desenhada (mangá) para filme. Um mangá não tem que ter
duração editorial específica (o tempo que leva para lançar
todas as edições pode variar bastante) e nem de consumo (o tempo
gasto para consumir o produto varia de leitor para leitor). Um filme
não pode ter mais de 3 horas (poder, poder, pode, mas), e na sala de
cinema o espectador tem que assistir nesse tempo (em casa dá pra
mudar isso um pouco, mas de forma geral o máximo que se faz é
pausar pra continuar depois ou voltar alguma parte que ficou pouco
entendida).
Então você tem aí um problema: se eu
tenho apenas entre 60 e 180 minutos pra contar uma história, de
forma geral não tem tempo pra colocar TUDO o que existe no texto
original na nova versão. E aí vem a origem da angústia humana que
Sartre apontou em “O ser e o nada”: a escolha.
(“É na angústia que o homem toma
consciência de sua liberdade (…) na angústia que a liberdade está
em seu ser colocando-se a si mesmo em questão”).
Para adaptar uma obra literária
(incluindo aqui romances, novelas, contos, poesia, letras de música,
histórias orais, gibis e mangás) para um meio audiovisual temos que
escolher não apenas o que fica, mas também o que sai. E essa
escolha é – ao menos inicialmente – uma escolha PESSOAL.
É possível que muitas pessoas
concordem com as coisas não estão presentes na adaptação – acho
que Tom Bombadil é um bom exemplo. Mas é possível que discordem. E
é quem adapta (ou o produtor) que vai definir o que é importante o
suficiente para manter-se na história. E outras coisas terão que
sair.
Às vezes, numa história, dois
personagens são fundidos porque no original cada um cumpria uma
função narrativa distinta mas não há tempo para que existam os
dois na adaptação. Outras vezes certas passagens são consideradas
irrelevantes (por quem?) para que a adaptação se torne
interessante. Na adaptação cinematográfica de “Senhor dos Anéis”
diversas passagens do livro foram esquecidas em prol da fluidez da
narrativa dos filmes.
Em outros casos os produtores acham que
faltam aspectos “fílmicos” no livro e os inserem nos filmes.
Peter Jackson (ou os produtores) resolveu transformar Gimli – um
personagem que nos livros é sério, sisudo, mal-humorado, até –
em alívio cômico. No livro não lembro de ter rido por causa de
Gimli. No filme, como os núcleos estão separados, resolveu-se
inserir um alívio cômico além dos hobbits Pippen e Merry – que
estão muito mais cômicos na adaptação do que na versão original.
Dizem que o número de interpretações
(ou leituras) de uma obra é igual (ou maior) ao número de leitores
dessa obra. Cada leitor vai criar a sua história, vai visualizar os
seus personagens, vai imaginar e associar suas referências de vida
às coisas que lê. E vai ser diferente para cada um. Uma passagem
específica vai ter significados diferentes para leitores diferentes.
Uma parte muito importante para a pessoa X vai ser irrelevante para a
pessoa W. E por aí vai.
Ou seja, adaptação sempre dá dor de
cabeça. E vai ser raro que todos espectadores concordem com o
resultado dos filmes. Lembre-se de “História sem fim”. Você
gostou do filme? Pois saiba que ali está adaptado menos da metade do
livro.
E por favor, PAREM de dizer que o livro
sempre é melhor que o filme. Primeiro porque o livro que você leu
tem uma construção toda sua, particular, construída por você,
coisa que o filme NUNCA vai conseguir reproduzir. Segundo, porque há
VÁRIAS adaptações que têm resultado muito superior aos textos que
as originaram (basta pensar em todos os filmes de Hitchcock).
Voltemos aos filmes.
Vou comentar os aspectos de cada um dos
filmes e compará-los para melhor (ou pior) apreciação do leitor.
Vale lembrar que o filme animado é de 1995(22 anos atrás). Muita
coisa já aconteceu no mundo nesse período, em termos de audiovisual
(narrativa e aspectos visuais). É interessante pensa-lo no seu
tempo, ou seja, com um pouco de relativismo. O filme live action de
2017 não tem esse facilitador porque é contemporâneo, dialogo com
o presente, está influenciado (e sofre pressão) de tudo o que já
foi feito antes.
- Roteiro
- Roteiro
O 95 tem um roteiro muito interessante,
coeso. Apela pouco para clichês e melodramas, apresenta bem a
problemática do filme, seus personagens, e usa o tempo para
desenvolver a história. E (dizem) se ateve de forma razoável à
história do mangá.
O Fraco tem uma história que se perde.
Quer falar de muitas coisas ao mesmo tempo, quer contar a história
pregressa da pessoa que teve sua mente incorporada ao androide, do
seu “melhor amigo”, do hacker que está sendo perseguido. Quer
tornar o filme muito pessoal e acaba fazendo mal uso do (pouco) tempo
disponível. Além disso, tem diversos clichês mal utilizados e
muito, muito melodrama. Não fugiu da história do mangá, mas trouxe
questões que não estão tratadas no 95, o que, para um remake, pode
ser interessante por somar novas coisas ao universo.
O Fraco tem TRÊS roteiristas. Isso
nunca é bom. Nunca.
- Visual
O 95 tem um visual MUITO bonito, ainda
mais considerando a época. Teve junção de desenho com computação
gráfica (em especial nos momentos de visual 3D). Se pensarmos na
época que foi exibido, ele também representou uma (pequena)
revolução em termos de temática e de estética. Afinal, o mangá e
o longa animado influenciaram as irmãs Wachowski para seu melhor (e
único bom) produto audiovisual: Matrix.
O Fraco também tem um visual
belíssimo. O dinheiro gasto nos efeitos especiais e na direção de
arte (desenho de produção) do filme foram muito bem utilizados. As
texturas, cores, objetos e cenários estão muito bem feitos. Neste
quesito o filme se afasta minimamente da animação (não em termos
de qualidade, mas de estilo) e acho que de forma positiva, somando ao
universo. Afinal, se for pra fazer algo igual, melhor não fazer, não
é mesmo? A fotografia do filme (Jess Hall) casa muito bem com as
animações, criando um conjunto funcional.
- Atuação
No 95 a atuação se resume às falas
dos atores, já que suas expressões e movimentos são representados
por desenhos. Não senti incômodo, e acho que seria difícil achar
algo estranho porque os atores são japoneses. Achei natural (mas
sempre acho estranho atuações em filmes chineses e já me
informaram que aquelas atuações são bastante naturais em
comparação ao comportamento das pessoas na China) e bem atuado.
No caso do Fraco, aconteceu algo muito
inesperado: Scarlett não está bem. Ela me parece perdida no papel.
Não consegui me decidir se é má direção, má atuação ou uma
junção dos dois. Tendo por achar que é uma junção das duas
coisas. Mas o fato é que ela parece se sentir estranha nas cenas de
ação e nas cenas de movimentação. Fiz uma comparação enquanto
assistia com sua atuação como Viúva Negra nos filmes da franquia
Marvel e estava definitivamente estranho. Ao mesmo tempo, talvez por
estar “infectado” pelo 95, achei a atuação dela muito emotiva
(nos momentos errados).
- Direção e Edição
O 95 é uma animação. Portanto, com o
dinheiro e tempo suficientes, é muito mais fácil atingir um
resultado específico. Com seres humanos atuando isso é muito mais
difícil porque não só precisamos nos fazer entender em termos de
atuação como precisamos também respeitar (e engolir) a liberdade
que o ator precisa ter para criar sua interpretação. É um
equilíbrio difícil de encontrar, ainda mais com diretores não
experientes. Assim, vemos no 95 boas atuações, boas cenas de ação,
bem editadas, com bom ritmo e compreensíveis.
No Fraco temos a questão da atuação
de Scarlett, que está estranha. A personagem Batou, neste filme,
está diferente em termos de personalidade, do filme 95, mas a
atuação está de acordo com sua nova personalidade. Os outros
também estão condizentes com seus papeis, com exceção da mãe da
Motoko, que parece perdida na atuação (e tem sua parte no roteiro
muito mal escrita). As cenas de ação são compreensíveis e não
são enfadonhas – praga do cinema de ação contemporâneo. E
criativas. O ritmo do filme é interessante, com pequenas pausas para
dar respiros e sem ficar o tempo todo na correria. Infelizmente as
cenas da mãe quebram muito o ritmo, e o fechamento do filme é bem
diferente do resto. É confuso, corrido, atrapalhado.
- Som
O som de ambos é interessante. O 95
teve um remix em 2008 onde melhoraram o som de forma geral, em
especial a dublagem americana, mas o áudio já era bastante
razoável, com músicas interessantes e efeitos idem.
O som do Fraco é muito bem feito –
efeitos sonoros interessantes, áudio bem gravado e mixado, trilha
sonora esquecível mas que trabalha a favor do filme, dando ritmo às
cenas.
Conclusão
Não sou contra remakes, adaptações,
atualizações (temporais ou culturais), mas não acho que o filme de
2017 seja necessário. É bonito visualmente, muito. É interessante
ver o resultado de forma diferente. É divertido ver cenas de ação
bem dirigidas. É estimulante ver uma história por um novo ângulo.
Mas o estrago causado pelo whitewashing, a má atuação de Scarlett
e o roteiro ruim me fizeram sair do cinema com vontade que esse filme
não existisse. Mas tenho certeza que a maioria das pessoas gostou.
Curiosidade: No Brasil, o título do
longa animado é “O fantasma do Futuro”, e o do longa live action
é “A vigilante do amanhã”. Temos uma péssima tradição de dar
nomes ruins aos filmes.
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