L'avventura

L’avventura (Itália/França, 1960, 145 minutos, preto e branco, Michelangelo Antonioni) é um filme que conta a história do desaparecimento de Anna e do envolvimento do seu namorado Sandro com sua melhor amiga, Cláudia. Um drama leve, envolto em mistério, que nos fala um pouco das relações humanas, principalmente das relações entre homem e mulher.

A primeira relação a que temos contato é a de Anna e seu pai. Apesar da filha ser uma mulher feita, ele não aceita bem ser deixado só num fim de semana por um namoradinho, e deixa claro que o rapaz (Sandro) nunca vai casar com ela. Ela também é dependente do apreço do pai, mas já o conhece, e não se deixa levar pelo drama. E ele ama muito a filha, o que pode ser notado pelo modo como se comporta com relação ao desaparecimento dela.

Anna é uma mulher independente, filha de um diplomata rico, aparentemente não trabalha, e que namora um arquiteto que passa muito tempo navegando. É uma mulher que está insatisfeita com esta distância entre ela e o amante e, se não fosse pela intromissão da amiga, o teria abandonado.

Apesar da independência, ela não sabe o que quer. Se quer continuar com ele, se quer deixá-lo. Segundo a própria: “pensar em te deixar me faz querer morrer”, mas ela (sente que) precisa ficar um tempo só: “um mês, um ano, três anos”. A atriz que faz o papel de Anna é Lea Massari, ainda iniciante na carreira. Além de representar muito bem o papel, é muito bonita, o que nos deixa evidente o lado “esteta” de Antonioni. Ela consegue colocar na tela a ambigüidade que Anna está sentindo, hora feliz por estar com ele, hora distante. Mesmo quando os dois fazem amor, as expressões dela são confusas, enigmáticas até. Assim como o seu sumiço. Outro fato interessante de se notar é que ela foge o tempo inteiro de Sandro. Primeiro, querendo nadar a qualquer custo para ficar sozinha. No mar, fingindo haver um tubarão (metáfora para o próprio Sandro) para voltar a bordo. Depois, querendo ficar sozinha na ilha, e desaparecendo, após um pedido de casamento por parte de Sandro.

Sua amiga Claudia é a única personagem de todo o filme (com exceção dos empregados) que não é rica. É uma mulher mais centrada do que Anna, um pouco mais decidida, e parece ser a única a realmente se importar com o desaparecimento da amiga, mesmo quando todos os outros já a esqueceram. Apesar de se sentir atraída por Sandro, tenta de toda forma evitar que aconteça um romance entre eles, e cede apenas quando não agüenta mais. A partir daí, continua a busca pela amiga desaparecida, mais por Claudia do que por Sandro (ou qualquer outra personagem, com exceção do pai de Anna), mesmo esta temendo ao máximo encontra-la – seria perder o novo amor. A atriz que faz este papel, Monica Vitti, trabalhou em diversos outros filmes de Antonioni, apesar deste ser a primeira parceria entre eles. Ela faz o papel muito bem, de forma muito realista, e para nós é claro quando a personagem está tranqüila, tensa, feliz.

Ela protagoniza o relacionamento mais importante do filme, o da amiga de Anna com seu ex-amante. Esse relacionamento nos diz muitas coisas. Primeiro, o posicionamento de Sandro em relação a Anna. Não que ele não gostasse dela, mas como ela não estava mais disponível, foi atrás da garota bonita mais próxima. Também há o posicionamento de Claudia, que apesar de querer o relacionamento com Sandro, evita-o ao máximo por respeito à amiga. De alguma forma pode ser visto como um relacionamento típico, que começa muito bem (os dois apaixonados), como casal junto o tempo inteiro, e incorre numa traição que é “perdoada”. Perdoada em parte porque Claudia não quer perder aquilo que ela tanto queria, por mais relutante que tenha aceito, e também porque ela já o ama. Ainda o suficiente para tentar remediar este fato. Aquele amor de quem acha que pode mudar o outro. “Como se pode levar tão pouco tempo para mudar?”, diria ela sobre si mesma.


Ele, representado por Gabriele Ferzetti – ator já conhecido de Antonioni (As Amigas) – é um homem aparentemente maduro, seguro e rico. Percebe que Anna o está tratando estranhamente, mas tenta não dar muito valor ao que ela diz e ao modo como se comporta. Sandro fica muito preocupado com o sumiço da namorada. Mesmo assim, não se priva de trocar beijos com Claudia, no barco, enquanto estão os dois sós. Inicialmente sua busca por Anna é séria, mas ele só continua impulsionado (e rechaçado) por Claudia. Pouco a pouco, ele vai convencendo Claudia a se deixar levar pelos sentimentos, até que os dois viram namorados, ainda em busca forçada por Anna. Ele continua a busca apenas porque Claudia está ali. E quando pôde, deixa escapar pistas importantes. Quando consolidado seu relacionamento com Claudia, Sandro a trai por outra qualquer. Não sabemos se é pelo prazer da conquista, se é pelo enfado, ou se é o modo de ser dos não proletários na visão de Antonioni: não dão valor ao que possuem. Tanto que na cena final seu choro é real. Ele está realmente consternado, como se sua própria necessidade de novidade fosse maior do que a sua força de vontade.

Outros relacionamentos homem-mulher são muito importantes no filme. Giulia e Carrado, por exemplo. Ele sempre grosseiro com ela, tratando-a como uma criança. Ela, como uma criança, irritando-se com ele sem tomar alguma atitude direta, até traí-lo. E ele aceita a traição como mais uma de suas criancices. Também podemos encontrar este tipo de casal no mundo real.

Patrizia e Raimondo formam outro casal sui generis. Ela, rica, e ele um mero empregado, como um michê. Representando assim a relação que existe entre alguns homens (ou mulheres) que mantêm uma relação ou pelo dinheiro, ou pelo status. Mesmo na presença do marido de Patrizia, Raimondo continua exercendo seu papel.

Ou o relacionamento do farmacêutico recém-casado e a esposa demonstra um pouco do que é estar casado. Ele dando em cima de qualquer garota que seja um pouco mais bonita. Ela, presa na teia de esposa-fiel-paranóica. Sandro se refere a este matrimônio como “o típico casamento”, como se fosse uma crítica do autor aos típicos casamentos, onde se casa para ter independência, ou por uma vida melhor, mas não por amor ou convicção.

Há também a pequena paquera entre dois viajantes de trem, onde o rapaz inventa coisas para se dizer próximo da menina, que aceita a conversa dele, talvez por ingenuidade, ou talvez por saber que assim é o jogo entre homem e mulher

Todos os atores escolhidos fazem muito bem seu papel, num filme que prima pela realidade das cenas. Apesar da fotografia em preto e branco (que torna o clima do filme muito mais misterioso), as cenas são muito reais, as representações são reais. A fotografia não se utiliza de efeitos, ou de muito contraste, mas tenta sempre manter o nível real das coisas. Mesmo sendo uma fotografia que “faz quadros” em diversas cenas, ou que trabalha muito com segundo e terceiro plano – principalmente na ilha, onde temos uma personagem em primeiro plano, outra em segundo mais atrás, e outra ilha, ou o mar, ou o horizonte, ou outro ator em terceiro – tudo é muito crível. Poucos movimentos de câmera também ajudam a ter essa impressão, com exceção apenas na ilha, onde há mais movimento, para tornar o espectador um coadjuvante na busca infrutífera por Anna. Há também muitos planos seqüência, que trazem essa idéia de tempo real para o espectador.

Para corroborar com essa “realidade” fílmica, o som é, durante quase todo o filme, diegético. Barcos, o barulho do mar, diálogos, efeitos, todos estão na tela. Há apenas 4 momentos em que existe música extra-diegética, que quase não são perceptíveis. Em primeiro lugar, a abertura do filme, em tela preta com caracteres brancos que se sobrepõem, em que toca uma música de cunho misterioso. A outra cena é quando Giulia tem um affair com um rapaz de 17 anos. Mais tarde, quando Claudia adormece no chão enquanto ouve Sandro falar de si, há outra música extra-diegética. E na cena final (fechando o ciclo), no momento de tensão do relacionamento entre os dois.

Quando Sandro e Claudia já estão juntos e continuam a busca por Anna (depois da cena do faracêutico), eles passam por duas cidades peculiares. A primeira, uma cidade fantasma. Uma cidade pequena, com todas as portas fechadas, inclusive a da igreja, onde as casas possuem um forte eco. Nessa vila eles parecem ter seu primeiro intercurso sexual. Talvez ali estejam tranqüilos, sem ninguém por perto para repreender-los.

Na próxima vila, dois fatos curiosos. Praticamente não há mulheres. Aparecem apenas quatro, sendo que duas trabalham no hotel onde Sandro e Cláudia se hospedam, uma é freira e a outra também aparece trabalhando. E muito homens nas ruas, como se a cidade fosse um lar de desempregados em busca de trabalho, um ponto de encontro. Tanto que quando Claudia sai à rua sozinha, todos os homens ficam a olhar para ela (seria uma cena que representaria a culpa que ela sente por ter roubado o namorado da amiga).

O outro fato é uma ação de Sandro. Ele derruba propositalmente um pote de tinta sobre um desenho. A personagem de Sandro é um pintor frustrado, bem como Antonioni, que se coloca em tela.


Ponto fortíssimo dos filmes de Antonioni também muito presente em L’avventura é o modo que é trabalhada a Direção de Arte. Há uma primazia em figurinos, planos, atores, nas locações, o que nos deixa assegurado que Antonioni prima muito pela estética visual. Desde a touca de banho até os vestidos de baile, passando pelos enquadramentos que são verdadeiras telas pintadas, à beleza ímpar dos atores principais, que é explorada de muitas maneiras, como na cena do barco em que Anna e Claudia trocam de roupa de costas para a tela. A cena inteira se passa com as personagens de costas para a tela, e possui não apenas uma força dramática, mas uma beleza enorme.

Tanta é a beleza no filme que podemos nos indagar se realmente devemos nos ater tanto aos diálogos. Uma fala de Sandro nos diz o seguinte: “as palavras tornam-se cada vez menos necessárias, elas criam enganos”. Não é a toa que há no filme muitos momentos de silêncio, para que o espectador possa apreciar o que está sendo mostrado na tela, e para que possa ter contato maior com o vazio das personagens.

Mais um fato ao menos intrigante. Em três cenas, temos personagens falando em inglês. Duas são absolutamente aceitáveis, a primeira no hotel onde Sandro aparenta viver, e a outra na festa de gala. Mas o morador do casebre da ilha também fala inglês, por ter morado na Austrália. E começa a faze-lo sem muito motivo. Fica sem resposta esta atitude de Antonioni, de inserir a língua inglesa sem um motivo aparente.

Na fala de Claudia: “Tudo está se tornando assustadoramente simples”.

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